A Zona Portuária, o Centro e a Zona Norte são as regiões que a prefeitura mais quer beneficiar com o Programa Carioca Local, de mudanças em regras urbanísticas e fiscais
FONTE: O GLOBO POR SELMA SCHMIDT
23/08/2015 5:00
Casario em mau estado no Largo do Boticário, no Cosme Velho: um dos projetos permite que os imóveis, residenciais, sejam usados também para fins comerciais, abrigando negócios como livrarias e bistrôs - Daniel Marenco
RIO - Do Morro do Pinto, na Zona Portuária, onde mora há uma década, Veridiane Pereira dos Santos acompanha o vaivém de operários que trabalham na construção — já na reta final — do Hotel Praia Formosa, com 594 quartos e 33 andares. Mas, quando lança o olhar para a vizinhança, o entusiasmo da dona de casa, de 26 anos e quatro filhos, dá lugar a interrogações:
— As obras desses edifícios (o empreendimento Porto Vida, com cerca de 1.300 apartamentos), que estão paradas há um ano (depois que a prefeitura decidiu levar a Vila de Mídia e de Árbitros das Olimpíadas para Jacarepaguá), vão ser retomadas? E esses casarões antigos? Vão ser reformados? Será que vão sobrar emprego e uma casa melhor para mim?
A Zona Portuária, o Centro e a Zona Norte são as regiões que a prefeitura mais quer beneficiar com o Programa Carioca Local, de mudanças em regras urbanísticas e fiscais. Várias medidas, no entanto, se estendem a toda a cidade. Segundo o secretário-executivo de Coordenação de Governo, Pedro Paulo Carvalho, o programa tem como principais objetivos estimular a construção de moradias, ocupar imóveis abandonados, subaproveitados ou ociosos, incentivar negócios tradicionais e, ainda, servir como antídoto à gentrificação (processo de substituição da população original por pessoas de maior poder aquisitivo, num local revitalizado, devido ao aumento do custo de bens e serviços).
— A tendência mundial é termos a população concentrada nas grandes cidades. Quanto maior o desenvolvimento, mais o patrimônio imobiliário se torna um dos principais ativos. Se o uso e a ocupação do solo forem mal regulados, a propriedade pode virar uma das maiores fontes de desigualdade. É preciso simplificar e baratear o custo da habitação — diz Pedro Paulo.
REUNIÃO COM 40 DOS 51 VEREADORES
Quatro dos sete projetos de lei e de lei complementar do pacote aportam esta semana na Câmara de Vereadores. Para tentar garantir a aprovação, o prefeito Eduardo Paes se reuniu semana passada com 40 dos 51 vereadores do Rio, que o apoiam. Paes quer criar a Imobiliária Social Carioca e, através de emenda a um projeto em tramitação, fixar critérios para a cobrança de IPTU progressivo de imóveis vazios ou subutilizados. Também serão abolidas exigências, a fim de baratear a construção de novas moradias. Já quem comprar imóvel abandonado ou com obras paradas terá isenção de ITBI, IPTU (por cinco anos) e ISS.
Outro projeto pode ajudar Veridiane a realizar um sonho: o de descer o morro para uma casa no asfalto, perto de onde vive. Pela proposta, a contrapartida para licenciar grandes empreendimentos — residenciais, com mais de 500 unidades, e comerciais, com mais de dez mil metros quadrados — poderá ser a doação, no mesmo bairro, de unidades de habitação de interesse social. Com isso, cria-se a possibilidade de haver imóveis para faixas de renda diferentes na mesma área.
Entre as regras urbanísticas que Paes quer implantar para baratear futuros empreendimentos habitacionais em toda a cidade, está, por exemplo, dispensar a construção de apartamento para zelador e de vestiário para funcionários de prédios. Áreas de recreação também deixarão de ser obrigatórias em edifícios com até cem unidades.
O mesmo projeto permite a volta do uso do térreo para a construção de apartamentos e dispensa a instalação de elevadores em prédios com até seis andares. Passará ainda a ser exigida apenas uma vaga de garagem por unidade habitacional, sem levar em consideração o número de quartos, nos bairros atendidos por metrô, trem ou BRTs.
— Há normas específicas para o Porto e o Centro, que dispensam garagens e que continuarão valendo. Mas existem bairros, como Tijuca e Leblon, onde novos empreendimentos precisam ter até três vagas por unidade — diz Maria Madalena Saint-Martin, secretária municipal de Urbanismo.
Os bicicletários, no entanto, passam a ser obrigatórios: terá de haver vagas para bicicletas de 20% das unidades. Entre outras exigências, estão a de arborizar a calçada em frente ao edifício e a de instalar mecanismos que permitam o uso racional da água, como a descarga de duplo acionamento.
Três dos projetos do pacote estão na Câmara desde 2012, e Paes quer prioridade na votação deles. É o caso do que concede benefícios fiscais — inclusive a remissão de débitos — a compradores de imóveis abandonados ou com obras paradas, como o edifício número 4 da Rua Marquesa de Santos, esquina com a Rua Gago Coutinho, em Laranjeiras.
Outra proposta mantida em banho-maria no Legislativo há três anos, que o prefeito quer votar já, se destina a edificações tombadas ou preservadas, que estão em mau estado de conservação, como os casarões do Largo do Boticário e o Solar dos Abacaxis, ambos no Cosme Velho. O projeto permite que esses imóveis, atualmente destinados a residências de uma só família, sejam transformados em multifamiliares ou albergues. Algumas atividades comerciais — como livrarias, consultórios e bistrôs — também podem ser autorizadas
As apostas do pacote, porém, estão mesmo na direção da ocupação do Centro, da Zona Portuária e da Zona Norte.
— Trata-se de áreas com infraestrutura e em processo de revitalização urbanística que poderiam ter mais moradores. Enquanto a Zona Sul tem 95 domicílios por dez mil metros quadrados, a Área de Planejamento (AP) 1 (Centro, Zona Portuária e adjacências) tem 41,5 domicílios e a AP3 (Zona Norte), 50 — diz Pedro Paulo.
IAB: DESAFIO É GARANTIR QUALIDADE DA OBRA
Para o presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio (IAB-RJ), Pedro da Luz Moreira, o pacote vai ao encontro do que a entidade vem defendendo há muito tempo: a necessidade de fixar a população mais carente na área central da cidade, onde o valor da terra é caro, devido à infraestrutura. Ele alerta, contudo, para o desafio de garantir a qualidade das construções:
— A prefeitura terá que analisar caso a caso e acompanhar as obras. Exigir menos vagas de garagem e dispensar apartamento para zelador não significa que a construção seja mal feita. É preciso exigir que sejam usados materiais de qualidade, não caros, mas resistentes. Não pode é haver edifício que precise de manutenção dois meses depois de inaugurado.
Quem mora na Zona Portuária já sente que o impacto das obras está indo além do trânsito caótico e da poeira. Há alguns dias, a sindica do Moradas da Saúde, Glecy Naegele Barbirato, foi indagada sobre apartamentos disponíveis no condomínio, que tem 150 unidades em nove blocos, no topo do Morro da Saúde. O interlocutor foi direto ao ponto, conta a síndica:
— A pessoa me disse que queria comprar para investir.
Há dez anos vivendo num apartamento alugado no Moradas da Saúde, o servidor do Ministério da Cultura Paulo Cesar Soares conta que, naquela época, os inquilinos pagavam R$ 500:
— Hoje, os imóveis estão sendo alugados por R$ 1.800, R$ 2 mil. Há quatro anos, dois amigos compraram apartamentos por R$ 120 mil e R$ 145 mil. Atualmente, os preços chegam a R$ 500 mil.
ALGUMAS PROPOSTAS
Estímulo à produção de moradia
Custo: Um projeto dispensa a construção de apartamento para zelador, alojamento e vestiários para funcionários e área de recreação (prédios com até cem apartamentos). Independentemente do número de unidades, edifícios de até seis andares não precisam ter elevador. Mesmo com estacionamento, o térreo poderá ter residências. Nos bairros atendidos por metrô, trens ou BRTs, basta uma vaga de garagem por apartamento. São obrigatórias a implantação de bicicletário para 20% das unidades, a arborização da calçada em frente ao prédio e a adoção de medidas para o uso racional da água.
Contrapartida: Outro projeto permite que a prefeitura determine que a contrapartida para licenciar a construção de imóveis residenciais, com mais de 500 unidades, e comerciais, com mais de dez mil metros quadrados, seja a doação de moradias populares no mesmo bairro do empreendimento. As residências podem ser em edificações novas ou reformadas.
Aproveitamento: Será pedida urgência na votação de um projeto que concede isenção de ITBI, de IPTU (por cinco anos) e de ISS (serviços de obras) para o aproveitamento de imóveis abandonados ou com intervenções paradas. O pedido de licenciamento da obra deve ser feito em até 24 meses após a sanção da lei.
Incentivos a negócios populares
Isenção: Para estimular a permanência do comércio tradicional, um projeto isenta de IPTU lojas de frente para a rua, que abriguem serviços e atividades como cinema, livraria, sapateiro e açougue. A medida não contempla estabelecimentos como shoppings, redes e franquias.
Transformação de uso
Preservação: Será pedida prioridade para a votação de um projeto que permite a transformação de uso de imóveis residenciais tombados e preservados. Eles passariam de unifamiliares para multifamiliares ou hospedagem turística. Esses imóveis poderiam ainda abrigar museus, bistrôs, livrarias, consultórios, ateliês, escritórios de arquitetura e design, entre outras atividades, desde que essa seja uma opção para a sua recuperação.
Combate a imóveis ociosos
IPTU Progressivo: Será pedida prioridade para a votação de um projeto que trata da cobrança de IPTU progressivo de imóveis vazios e subutilizados, inclusive os tombados e preservados. A proposta vale para o Centro e as zonas Norte e Sul. Uma emenda a ser apresentada estabelece regras. Os proprietários terão um ano após a notificação para utilizar o imóvel ou protocolar um pedido de licença para parcelamento do solo, construção, reforma ou restauração da edificação. Terão dois anos após a concessão da licença para iniciar as obras e cinco para concluí-las. O IPTU progressivo começa com 2,4% do valor venal (residências), 5,5% (comércio) e 6% (terrenos). Em 5 anos, chega a 15%.
Imobiliária Social Carioca
Aluguel subsidiado: Um projeto cria o Fundo Municipal de Locação de Interesse Social. O objetivo é aumentar a oferta de imóveis residenciais e comerciais (negócios populares e tradicionais) para aluguel subsidiado no Centro, Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Lapa, São Cristóvão e Benfica. Os benefícios serão dados a famílias com renda de até R$ 5 mil, que trabalhem na região, e comerciantes e pequenos empresários com negócios na área.
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